Não Somos Amados (Songbook)
Um misto de contentamento e apreensão foi o que senti quando soube que um dos meus sobrinhos havia sido aprovado no concurso da PM. Imediatamente disse a mim mesmo que o procuraria depois para aconselhá-lo acerca do que significa ingressar na PM e das armadilhas impostas a um policial em inicio de carreira.
Pensando assim consegui adiar um pouco a preocupação e viver a satisfação de está vendo surgir, talvez, uma nova geração de policiais na família Rocha.
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UMA VIAGEM NO TEMPO
A conversa com o meu sobrinho me remeteu a um passado que, apesar de distante, ainda permanece fresco na minha memória: o meu tempo no CFAP (centro de formação e aperfeiçoamento de praças), escola de formação de sargentos da PMBA.
Na primeira aula, ao questionar a respeito da profissão anterior de cada aluno individualmente o oficial baixinho, gordo e de óculos dirigiu-se a mim, e, determinando que eu me levantasse, sentenciou:
-Você era radialista, aluno... e radialista é uma profissão simpática... as pessoas se divertem com os comentários engraçados oriundos do rádio ou acreditam nas coisas supostamente serias das quais falam os locutores. As pessoas os amam, amam as suas vozes propositadamente macias. E você abandonou uma profissão assim buscando ser “policia”...
Tentei argumentar acerca do baixo salário que recebia e da questão da estabilidade de um emprego publico, etc., mas ele, de forma áspera e com o dedo ainda em riste muito próximo do meu rosto me impediu de continuar falando...
-Você foi corajoso... mas será que você tem consciência dessa sua opção? Você sabe quem é que gosta de policia meu rapaz?Ninguém gosta de policia. Os seus amigos vão se afastar de você. A sociedade vai te olhar com desconfiança e a imprensa – sem sequer te ouvir - vai apenas te acusar quando alguma desconfiança pairar sobre ti. Você vai se sentir perseguido pelos governos sejam eles de esquerda ou de direita. Vai ver o teu salário sendo achatado mês após mês, ano após ano. Nem mesmo a mulher do “policia” acredita no “policia” e isso você também vai perceber algum dia...
“Talvez apenas a mãe do policia goste dele de verdade... talvez...” disse com voz cansada e semblante abatido enquanto se sentava por fim.
Desconfiei naquela hora que aquele oficial dizia tudo aquilo muito mais para si mesma. Era um desabafo que só muito tempo depois eu iria conseguir compreender de fato.
“Será que tem mesmo que ser assim?!”
PARABENS
...Mas, antes de qualquer coisa eu precisava felicitar o meu sobrinho pela decisão de ingressar nas fileiras da PM. Precisava falar do orgulho e da dedicação que eu e todos os meus irmãos sempre dispensamos a nossa PM... Falar, com verdade, desse amor que aprendemos a sentir ainda com o nosso pai e antes mesmo de nos tornamos policiais.
Eu iria falar, também, do grande patrimônio da policia: Os seus policiais em todos os níveis hierárquicos. Contar estórias de valorosos companheiros que tombaram em combate na defesa da sociedade e que não está mais entre-nos... E falar, também, de outros tantos que, por fraqueza, falta de orientação ou de caráter acabaram por enveredar pelo caminho do crime.
Também, por tudo isso, eu necessitava lhe assegurar de que deveria sim, sentir orgulho da farda que iria vestir e falar um pouco do regozijo de salvar vidas e ver a alegria estampada nos rostos das pessoas após uma ação honesta e bem sucedida de uma equipe policial... vou lhe dizer que essas ações não são esporádicas e nem raras; que longe das câmeras de televisão são cotidianas e rotineiras até...
E quando, finalmente, ele questionar acerca dos motivos da péssima imagem da corporação apesar de tantas ações positivas, falarei de uma doença maldita que mina a imagem da PM e compromete toda a corporação.
UM TEMPO PARA O JORNAL NACIONAL
...Nesse momento, enquanto escrevo (11/11/2008 as 20 h) a TV Globo está noticiando um fato ocorrido ontem em Pernambuco que tem tudo a ver com a minha pretensa explanação em forma de conselhos:
A matéria fala de elementos fardados pertencentes a PM espancando jovens pobres da periferia enquanto os obrigam a se beijarem na boca em meio a risadas. Essa palhaçada que aconteceu ontem em Pernambuco foi transmitida durante todo o dia em todas as redes de televisão do país e está na internet... Eles próprios se encarregaram de fazer a filmagem por meio de telefone celular.
Enquanto essa guarnição de bandidos fardados agia outras dezenas de policiais da PM pernambucana trabalhavam honestamente com a finalidade de coibir a pratica do crime nas cidades do estado... mas a atitude dos babacas anula toda a produção dos verdadeiros policiais. Tudo é jogado por terra. A cena constrangedora choca ao mesmo tempo em que compromete a imagem de todas as PMs do Brasil.
Individualmente me sinto envergonhado e sei que todos os policiais honestos de todos os cantos do Brasil também compartilham comigo desse composto de vergonha e indignação.
AOS CONSELHOS
Não vou me estender nos conselhos e muito menos tentar ser didático . É tudo muito claro e o meu sobrinho deve ter assimilado bem a matéria durante o seu curso de formação.
Grande parte dos crimes cometidos por PMs acontece por absoluta falta de conhecimento legal. Quando falo nesse assunto logo me lembro da frase de um velho Coronel que ao ser questionado acerca do seu poder enquanto oficial de patente superior dizia: “Eu gostaria de ter apenas 5% da autoridade que um soldado de policia pensa que tem.” Essa frase resume tudo.
A matéria legal (Direito) fará parte da rotina do policial por toda a sua vida e, embora isto pareça obvio esse tema não é prioridade nos cursos de formação de policiais militares e o preço pago pelo policial individualmente e pela corporação como um todo é imenso e muitas vezes irreparável.
“BANDA PODRE?!” OU A DOENÇA.
“Banda podre” é a expressão mais usada por segmentos da imprensa sempre que surge um fato criminoso de maior repercussão envolvendo indivíduos que compõem as policias e isso é algo que enche de embaraço a todos os policiais.
Quando utilizada, a expressão “Banda podre” sugere de imediato a idéia de metade. Pensa-se numa laranja, por exemplo, em que a metade esteja comprometida, podre.
De fato a existência de elementos criminosos infiltrados nas policias parece claro, mas a idéia de metade é exagerada e por isso não concordo com ela.
Por outro lado, vejo sim, a existência de uma doença entranhada na PM que pode ser ainda mais grave que a tal “Banda Podre” por que atinge não a metade, mas quase que a totalidade da instituição. É dessa doença a qual me referi no começo desse texto que agora passo a falar e é esse também o ponto central desta narrativa.
A DOENÇA
A doença que mina a imagem da PM a qual me refiri no capitulo anterior, não é algo palpável ou visível... Não é localizada. Está entranhada em quase 100% da corporação que não se dá conta da sua existência, mas padece fortemente das suas conseqüências nefastas. A doença da qual falo não tem um nome especifico, mas vou batizá-la com uma sigla que aqui chamarei de CTPVG: (CULTURA DA TOLERÂNCIA À PRÁTICA DA VIOLÊNCIA GRATUITA)... ou seja, policiais não violentos aceitam a violência cometidas por outros maus policiais como sendo algo normal ou menos grave...e não conseguem dimensionar as conseqüências nefastas resultantes dessa omissão :
-A agressão é covarde porque, quase sempre, é praticada contra pessoas que não podem se defender.
-A agressão é absurda porque é praticada por agentes da lei remunerados pela sociedade para fazer valer a legalidade.
-A agressão é irresponsável também porque as suas conseqüências, em ultima analise, vão recair sobre a instituição comprometendo a sua imagem como um todo.
-A agressão é pérfida porque vai atingir a todos os demais policiais indiscriminadamente em função da farda que vestem.
Apesar de todos os malefícios advindos dessa violência ela é tolerada até mesmo por profissionais em segurança publica que jamais fizeram uso de qualquer espécie de violência durante as suas rotinas enquanto policiais.
Não é mais possível que policiais honestos continuem a pagar um alto preço em função da atitude covarde e criminosa de alguns outros. PMs doentes, incapazes de controlar seus instintos perversos devem ser denunciados aos comandos e devem ser retirados da atividade fim da corporação para tratamento ou exclusão a depender de cada caso.
A CTPVG essa doença coletiva que está entranhada no seio das agremiações policiais precisa ser sanada sob pena de comprometer todo o aparelho policial.
O mal ao qual me refiro não é a violência em si, (esta por si só já é condenável)é a indiferença e a condescendência diante dessa violência. É a tolerância diante da prática dessas agressões e da convivência “normal” e pacifica entre bons policiais e pseudo-s policiais sabidamente truculentos, arbitrários e violentos.
Todos sabem identificar esses maus policiais e essas suas características de violência, mas ninguém os denuncia. Muitos os vêem como pessoas engraçadas: “O policia doido” ou “O policia bronca”.
A idéia de “Banda Podre” comumente utilizado pela imprensa parece simples se comparado a essa doença que mina a saúde mental da policia coletivamente.
Esses elementos reconhecidamente nocivos a sociedade parecem inofensivos para nos policiais e a impressão que temos é a de que eles não vão nos prejudicar. Ledo engano. A imagem ruim da PM é resultado dos diversos crimes cometidos por estes parasitas fardados. Muitos assassinatos a policiais inocentes se deram em função de vingança. Pequenos delinqüentes espancados cruelmente por estes maus policiais podem estar atirando pelas costas de policiais de forma indiscriminada. Ou seja, indiretamente, esses bandidos fardados podem estar sendo os responsáveis pelas mortes de muitos bons profissionais.
Um outro aspecto grave é a facilidade com que esses elementos conseguem influenciar os novos policiais recrutando-os nas suas praticas de crueldade e impondo a inversão de valores.
Finalmente, até mesmo os nossos amigos, filhos, irmão e pais podem estar sendo vítimas desses algozes que por vezes achamos engraçados.
Parecemos um monte de alienados vendo passivamente as coisas acontecerem, se não vejamos:
Como é que você, um policial honesto combativo e atuante; que age sempre observando os preceitos da legalidade e se orgulha da farda que veste pode permitir e aceitar como normal no seu meio a presença de um falso policial que faz uso de violência contra civis desarmados ou pequenos delinqüentes com requinte de crueldade?
Talvez seja o falso espírito de corpo, talvez seja mesmo essa doença mental coletiva a que me refiro que nos subtrai a razão.
O fato concreto é que esses maus policiais – diante da inércia dos bons policiais - se proliferam mais e mais a cada dia e vai tomando conta da corporação... Vai impondo os seus valores invertidos e vai fazendo o absurdo parecer lógico.
Vamos imaginar um policial bandido tripulando uma viatura com outros dois policiais: Numa abordagem normal no meio da madrugada (e protegido por esta) ele vai se antecipar aos demais e vai agredir o cidadão abordado gratuitamente independentemente de ter ou não encontrado algo que comprometesse a sua vítima.
A partir daí vamos pensar em dois possíveis desfechos para esse caso:
1- O mal policial é enfaticamente repreendido pelo seu comandante imediato presente na guarnição. O fato será comunicado ao comando do Batalhão posteriormente.
2 – O comandante da viatura fará vistas grossas ou minimizará o fato, talvez sorria, juntamente com o restante do grupo, achando engraçada a atitude do “doido”.
A atitude número dois é típica e muito provavelmente seria a atitude adotada. Com o tempo a condescendência vai se transformar em conivência e as contaminações serão inevitáveis. Imagine agora uma equipe de PMs violentos e desgovernados a bordo de uma viatura a soltos pelas ruas da cidade.
Quando usei o termo “contaminações” no plural eu quis dizer que a prática da violência citada, normalmente é apenas o primeiro passo para a prática de outros crimes que podem ir da extorsão ao assalto a mão armada como tem se verificado.
As ações delituosas desses maus policiais contribuem de forma extremamente significativa para alimentar o ódio e o medo de grande parte da população com relação a PM. Essa ojeriza não é gratuita. Jovens de uma determinada favela carioca afirmaram sentir mais medo de policiais durante um possível encontro noturno do que de bandidos propriamente ditos.
O fato é que todo esse desprezo por parte da sociedade mexe com o equilíbrio psicológico do policial. Mal remunerado e mal amado o bom policial sofre. A baixa auto-estima é evidente e muitas vezes, sem uma orientação profissional adequada, ele começa a entender que o mundo o odeia e que, para se defender, precisa também odiar o mundo na mesma proporção. O resultado de tudo isso, além de mais ódio, pode ser uma doença mental, (patologia comum nas PMs) mais violência ou , em alguns casos , até mesmo o suicídio.
O PM é violentado pelos órgãos de direitos humanos que não o reconhecem como ser humano. É perseguido e retaliados por governos sejam eles de direita ou de esquerda e – o que me parece pior – não encontra orientação e compreensão no seio da sua corporação por parte dos seus superiores hierárquicos.
Precisamos nos livrar desse ciclo e o começo de tudo passa pela conscientização de que (nos policiais) não podemos mais tolerar a conduta violenta dos maus policiais. A policia existe para assegurar e garantir os direitos individuais e até mesmo quando combate, de forma honesta, o ato delituoso de alguém está agindo para proteger o direito de outros. Esse é o nosso trabalho.
TRATAMENTO OU RUA
Há dois tipos de individuo violentos na PM. Um é essencialmente perverso e encontra na farda o escudo perfeito para dar vazão a sua psicose.
O outro quase sempre é alguém que por qualquer razão se deixa induzir na prática da violência. É talvez alguém de personalidade frágil que começa a agir de forma violenta apenas para justificar uma pretensa fama a ele atribuída ou coisa parecida.
Em ambos os casos esses elementos devem ser identificados e afastados da atividade fim da corporação.
O policial é um ser humano como qualquer outro e como qualquer humano está sujeito as armadilhas da vaidade. Ocorre que na PM, especificamente, a vaidade pode ser a fama de bom combatente.
Policiais verdadeiramente combatentes enfrentam a criminalidade com destemor e o sacrifício da própria vida em defesa da sociedade... mas não são, por isso, pessoas violentas. Nessa guerra, muitas vezes, a morte de elementos criminosos pode parecer chocante, mas faz parte dessa batalha.
Observe que me refiro ao combate legal a elementos de alta periculosidade, armados. Uma ameaça real a vida das pessoas e principalmente a vida dos policiais.
Há, contudo e infelizmente, maus policiais que no afã de aparecer forjam situações e extrapolam com violência diante de pequenos delinqüentes quando não de inocentes. Esses são os falsos combatentes e são, por conseqüências, os falsos policiais.
É possível se cortar a metade podre de uma laranja aproveitando-se o resto saudável.
A patologia da qual tenho falado ao longo desse texto é muito mais complicada. Uma imensa parte da corporação está inconscientemente alimentando a existência de um pequeno (mas altamente atuante) grupo de criminosos infiltrados no seio da policia. Ou seja: Os policiais honestos que minimizam a atitude violenta dessa minoria de maus policiais estão alimentando e permitindo o crescimento desses grupos.
Só quando a bomba estoura como o caso dos PMs de Pernambuco (só para citar o mais recente) é que vai se perceber que a vítima maior são sempre e justamente os bons policiais. A imprensa e a sociedade vão generalizar, seu vizinho vai comentar estarrecido e nas ruas as pessoas vão lhe olhar como se fosse você o bandido fardado que fez a besteira.
Todo policial corrupto tem um histórico de violência no seu currículo e esse é o aspecto que vai indicar um potencial criminoso vestindo a farda da PM. Os comandos, sozinhos, jamais vão conseguir identificar e punir essa gente. Só quem pode salvar a policia são os próprios policiais quando deixarem de ser condescendentes diante da violência gratuita patrocinada por pretensos “colegas” violentos.
Muitos dos elementos marginais camuflados no seio da PM são bandidos contumazes que conseguiram burlar a vigilância da sindicância e ingressar na corporação... contudo, o mais preocupante, é que a grande maioria começou a trilhar o caminho do crime justamente depois de terem se tornados policiais.
A entrada de um policial para o mundo do crime quase nunca se dá de repente. O cara não acorda um dia pela manhã, se espreguiça e diz: “Vou ser bandido a partir de hoje”. Não é assim.
O caminho para o crime, quase sempre, se dá de forma sutil, começa com pequenas ilegalidades e muitas vezes a falta de conhecimento e orientação são os motivos maiores desse flerte com o crime.
O fato é que, mesmo depois de estar seriamente envolvido com a delinqüência propriamente dita, ele não se da conta do novo caminho que esta trilhando, não se sente ainda um bandido. É como um viciado que não percebe o seu vicio. Pode parecer surreal, mas em verdade, quase sempre, a ficha só vai cair quando ele for apanhado.
QUANDO TUDO COMEÇA COM O “GUIZO”
“Guizo” é uma gíria utilizada no meio policial para rotular o bajulador de policiais. O guizo faz pequenos favores... Paga o almoço, oferece um lanche etc. O policial o ver como um bobo engraçado e não consegue perceber que em mais de 90% das vezes o “guizo” não é aquela criatura inofensiva que aparenta ser. O “guizo” é, quase sempre, uma pessoa perigosa e mal intencionada. Um espertalhão.
Sem que o policial se aperceba o que era apenas um agrado pode passar a ser propina e o policial vai ficando nas mãos do seu agora protegido. Se o ex “guizo” agora protegido é dono de um pequeno ou médio estabelecimento ele logo dá um jeito de oferecer um trabalho remunerado ao protetor, um “bico”. O praça pensa, pensa, se preocupa... não quer o “bico”, mas começa a pesar as coisas. O salário é curto e as despesas só aumentam. Decide aceitar.
Logo o ex “guizo” e ex-protegido ganha o status de patrão. Um grande negócio para ele que terá um policial treinado pelo estado com autonomia para andar armado vigiando o seu estabelecimento e ao seu serviço. Quase um capanga.
...E o policial, sem se dar conta, é rebaixado, nas horas vagas, a condição de vigia.
Nesse momento esse policial deveria ser muito bem observado e orientado pelo seu comando, mas esse tipo de atitude é um delírio na PM onde a filosofia é “cada um que responda a sua bronca”, ou seja, é cada qual por si.
O fato é que se está diante de uma - dentre outras situações limite - que pode transformar um homem de bem, num bandido em potencial. Vejamos como.
O MALDITO “BICO”
O salário de fome imposto aos policiais pelos diversos governos de estado em quase todo o país ao longo dos anos fez surgir nas policias a famigerada figura do “bico”. Policiais trocam as escassas horas de folga pelo trabalho de segurança particular remunerado. Uma boa oportunidade para os comerciantes, como enfatizei, mas, muito ruim para o policial que vai estar só e exposto numa situação de incerteza absoluta. Um alvo fácil. Basta ver que a grande maioria de policiais assassinados este ano em Salvador fazia bicos nas suas horas de folga.
Outro grande prejudicado com o advento do bico é a própria sociedade que (não) vai contar com um policial cansado, sonolento e desestimulado durante o serviço prestado a população.
DE NOVO O “GUIZO”
Vamos voltar ao nosso personagem, o jovem soldado, agora vigia do seu ex-guizo, ex-protegido e agora patrão.
Vamos imaginar um mercadinho para seu local de trabalho, mas poderia ser uma mercearia, uma padaria, uma boate ou mesmo (pasmem) uma fortaleza do jogo do bicho. ”Bico” é “bico”.
O primeiro dia de trabalho é tenso e, sem a presença dos colegas de viatura ele se sente deslocado. Tateia muitas vezes o seu revolver calibre 38 para ter certeza de que ele está ali, seu único companheiro.
O patrão – cada vez mais falando como patrão – já lhe aponta quem são os “vagabundos” da área e ele está atento a presença desses meliantes.
“Vagabundo” é um termo policial que tem uma conotação tão ampla quanto imprecisa e que, em geral, engloba qualquer pessoa que mereça uma abordagem.
Depois de alguns dias no “bico” o policial finalmente consegue ver um dos “vagabundos” rondando o estabelecimento. Vamos agora, novamente, imaginar dois cenários: No primeiro o impetuoso policial aborda o suposto meliante “dá uma dura” determina que ele não se aproxime mais do estabelecimento, aplica uma “broca” e saca a arma provocando a fuga atabalhoada do rapaz.
Esse suposto cenário completamente arbitrário vai (também supostamente) fazer a alegria do comerciante que se derramará em elogios do tipo “agora eu botei fé”.
Naquele dia o “policia” levaria leite, bolo e pão para as crianças por conta do patrão.
Vamos imaginar um segundo cenário e desta vez o policial vai apenas observar a movimentação do rapaz que depois de algum tempo vai embora.
Esta atitude do policial talvez não agrade o patrão que vai a partir daí desconfiar da competência do policial baseado, naturalmente, no seu conceito de competência.
Não vou me alongar nessa estória e nem vou criar um final trágico ou feliz para ela. Deixo isso por conta do leitor.
Mais importante é dizer que já vi inúmeras estórias muito parecidas com essa e o final de muitas delas foi de fato trágico. Essas estórias, na vida real, é contada em manchetes de jornais e em geral não dizem como tudo começou, não traçam um roteiro. É apenas a matéria fria encabeçada pela sentença da manchete:
“PRESSIONADO POR COMERCIANTE POLICIAL MATA MENOR”ou “IDENTIFICADO POLICIAL JUSTICEIRO”ou ainda “POLICIAL FAZIA PARTE DE GRUPO DE EXTERMINIO” etc., etc., etc.
A linha que separa o bom policial do mundo do crime é extremamente tênue e um jovem que decide a entrar para a policia – se mal orientado - tem mais chance de vir a fazer parte do sistema prisional, do que aquele que não fez essa opção.
O trabalho policial é uma sucessão de fatos que se apresenta a todo o momento de forma inusitada. Nessas ocasiões é preciso ter conhecimento e discernimento para se questionar: Isto é certo? Isto é legal? Só o conhecimento de causa vai lhe permitir agir acertadamente com segurança e ainda fazer com que o erro não aconteça por parte dos seus companheiros ou subordinados... e só o estudo cotidiano vai te dar essa condição.
Numa situação em que tenha que efetuar a prisão de uma pessoa de qualquer classe social, por exemplo, o policial deve ter a tranqüilidade e o conhecimento para tal. Deve saber tipificar o crime ou infração cometida pelo cidadão e saber transmitir a ele o motivo da prisão ou autuação. Se nesse momento o policial titubear por falta de conhecimento ele tende a pagar um alto preço e até ser humilhado publicamente, principalmente se a pessoa autuada dispuser de nível intelectual elevado (e um caráter duvidoso)
É preciso estar seguro do que se está fazendo e essa segurança só pode ser adquirida com o conhecimento.
Se você está seguro, não grite, converse com voz firme, se imponha pelo argumento legal. Não agrida. A agressão física é típica de quem não tem contexto... mas também não se deixe agredir. Se imponha. Deixe claras as prerrogativas legais disponíveis como a prisão por desacato e faça o uso da força necessária quando for preciso. Até nesse momento você vai perceber que vai precisa de conhecimento de defesa pessoal para evitar o uso da arma ou da força excessiva.
Resumindo: A profissão Policial Militar como a maioria das profissões modernas exige estudo constante mesmo depois da formatura.
COMENDO CHEIRO
“Comer cheiro” na gíria policial significa se deixar enganar no momento de uma abordagem liberando um criminoso acreditando ser este um cidadão comum inocente.
O PM, na área, tem pavor dessa situação e a maioria afirma que “não come cheiro de ninguém”. É ai que mora o perigo. No afã de não se deixar enganar o policial pode cometer uma injustiça que vai macular o seu trabalho e o deixar mal diante do seu travesseiro.
Para não se deixar enganar alguns policiais utilizam métodos que nada têm de cientifico em suas abordagens como cheirar as mãos do suspeito ou coisa parecida. Não se identifica bandido pelo cheiro da mão, touca na cabeça ou o pronunciamento de gíria durante a revista. Gente de bem pode também ter tais características.
Lembro-me de uma manhã ensolarada de um domingo aparentemente sereno, quando patrulhávamos tranquilamente a bordo de uma viatura tipo Santana pela Avenida Joana Angélica no centro de Salvador. Tudo parecia extremamente calmo quando um garoto negro de 19 anos nos acenou solicitando os nossos serviços. Ele dizia ter sido vítima de um golpe há um ano atrás e que acabara de cruzar com o autor do crime bem ali nas proximidades. Contou ainda que o crime do qual fora vítima baseava-se num anuncio de jornal cadastrando pessoas, mediante pagamento, para trabalhar no exterior.Dezenas de outras pessoas haviam sido vítimas do mesmo golpe, segundo ele.
Sem mais delongas nos deslocamos até a lanchonete aonde se encontrava o suposto meliante, segundo a vítima.
Sem vacilar o rapaz apontou na direção de um Sr. branco, olhos claros, de 50 anos aproximadamente vestindo um conjunto de terno impecável e uma valise de mão, tipo 007.
Depois de abordá-lo e narrar os fatos segundo a versão da vítima convidei-o a me acompanhar até a delegacia de defraudações para elucidar os fatos.
Como já era de se esperar o cidadão reagiu com indignação recusando-se a nos acompanhar.
Com muito esforço conseguimos conduzi-lo com a condição de que ele próprio dirigisse o seu veiculo acompanhado por um dos soldados e escoltado de perto pela viatura.
No caminho até a delegacia o cidadão (muito, muito articulado) já conseguira convencer o policial que o acompanhara da sua inocência. O mesmo viria a acontecer na delegacia.
Enquanto o suposto executivo falava com o seu advogado usando o telefone da policia um agente me dizia baixinho em tom de gozação: “fez cagada em sargento?”. Naquele momento eu próprio já estava em dúvida, dúvida que, felizmente, se acabou com a chegada de um velho delegado que mal adentrou o recinto e foi logo reconhecendo o homem ao telefone quando determinou que o algemassem imediatamente.
Com uma ficha gigantesca, ficamos sabendo que se tratava de um falsário, um estelionatário, um golpista ou um “quebrão” como se diz no meio policial. O cidadão, aparentemente acima de qualquer suspeita era na verdade um bandido procurado em quase todos os estados da federação.
O curioso é que num determinado momento, durante o episodio, os papeis quase se inverteram quando um agente insistia em dizer que já havia prendido a vítima, o rapaz negro em alguma outra situação. Rispidamente começou a interrogá-lo enquanto o verdadeiro bandido falava ao telefone e era servido de cafezinho.
A situação que descrevi foi um fato que marcou a minha carreira policial. É preciso muito cuidado no trato com as pessoas e a situação socioeconômico não pode nunca ser levada em conta numa situação de abordagem. O policial deve agir com imparcialidade e firmeza... mas também com cortesia. Devem-se pedir desculpas as pessoas após a abordagem. Não pelas abordagens em si, porquanto se trata de um direito do policial na defesa da própria sociedade... mas, desculpas pelos transtornos óbvios de qualquer abordagem policial.
A PM não é uma policia de investigação. Esse papel cabe a policia judiciária e o PM tem que ter consciência disso. A abordagem busca tirar de circulação elemento armados, criminosos foragidos e camuflados em meio à população. Se há dúvidas comunique-se com a central via radio, forneça dados do suspeito e obtenha as informações de que precisa, mas não aja por impulso ou apenas pela vaidade imbecil de não “comer cheiro” sob a pena de cometer injustiças.
Não custa repetir: O policial deve ser implacável contra a bandidagem, mas tem também a obrigação de ser cortês e humano no trato com a população.
BOM SENSO E “TERMO DE BEM VIVER”
Há coisas que vivemos e registramos no nosso subconsciente. Há palavras que escutamos e assimilamos como sentença para nunca mais esquecer.
Quando me formei Sargento descobri logo nos primeiros dias de trabalho na área que a minha condição de primeiro colocado no curso não eram garantias de acerto nas minhas atitudes e decisões cotidianas.
A bordo de uma viatura e no comando desta você não tem o direito de errar e também não tem uma fonte de consulta que lhe permita acertar sempre.
Passei a estudar mais, me inteirar sobre matérias inerentes ao meu dia-a-dia e me tornei um obcecado pelo direito. Nessa época pensei em ser advogado.
A concepção fria, fruto dos meus estudos me fez concluir que existem apenas dois caminhos: Ou é legal ou não é legal e ponto. Mas não é bem assim.
Um dia me deparei com um desses problemas que parece não ter saída: Agir da forma que a lei determinava naquela hora significava cometer uma injustiça sem tamanhos.
Foi aí que ouvi de um espirituoso e competente oficial da minha companhia aquela frase que no momento me pareceu mágica e que jamais vou poder esquecer:
“O bom senso está acima de tudo Rocha”
...E assim tudo se resume. Conhecimento é fundamental, mas o bom senso é imprescindível.
...E O TERMO DE “BEM VIVER”?!
Foi pensando no bom senso que me lembrei das estórias do meu pai.
Meu pai era o único policial no pequeno e distante povoado de Itati no Sul da Bahia.
Em Itati não havia Prefeito, Promotor, Juiz ou Delegado o que conferia ao meu pai o status de única e maior autoridade do povoado mesmo sendo apenas um simples Soldado da PM.
Com pouquíssima instrução meu pai exercia a sua autoridade baseada principalmente nos princípios da coragem e do bom senso.
Tudo passava por ele.
Ciganos que tinham a pretensão de acampar por algum tempo no lugar precisavam de uma autorização previa do SD Rocha e para conseguir tal documento havia a necessidade formal de uma entrevista onde as condições para a permanência pacifica eram estabelecidas.Uma vez infringidas essas regras a expulsão era fato consumado.
Quando precisava de um efetivo maior em razão de alguma diligencia extra, tipo expulsão de ciganos ou caça a lobisomem, meu pai convocava cidadãos adultos do sexo masculino e formava um pequeno contingente. Sempre funcionava e as pessoas sentiam-se orgulhosas pela convocação ou frustradas por terem ficado de fora.
As atitudes do meu pai no começo dos anos 60 não eram baseadas na legalidade, mas funcionavam e eram aceitas pela população. Ele era respeitado e admirado. Era querido.
O rapaz que “tirasse uma moça de casa”, como se dizia na época teria que se casar. Se não o fizesse por bem, na igreja, fá-lo-ia por mal na policia. Nesse caso era o meu pai quem formalizava o casamento.
Um dos remédios “jurídicos” mais eficientes e interessantes inventados pelo meu pai era o “termo de bem viver”.
Jovens casais que não conseguiam se ajustar e brigavam com freqüência - quando denunciados por parentes, (mãe, pai, sogro, etc.) - eram obrigados a assinar diante da autoridade (SD Rocha) um documento com algumas regras estabelecidas (de acordo com cada caso já que era redigido na hora) com o objetivo de preservar e melhorar a união. O “Termo de Bem Viver”, assim chamado era um sucesso e graças a ele muitos casamentos foram salvos.
Essas estórias, como disse, aconteceram no inicio dos anos 60 e servem apenas de ilustração para falar de bom senso... É claro que hoje tudo é bem diferente.
SARGENTO ROCHA, O ESTATÍSTICO.
Junto com o meu fascínio pelo Direito – logo depois do curso de formação de sargentos _ me interessei, também, por números, por estatísticas.
Elaborei, a título de experiência, um questionário com perguntas diversas e distribui entre os companheiros de quase todas as patentes e graduação do Quinto Batalhão.
O resultado me fez elaborar um gráfico com resultados assim:
87% dos policiais diziam jamais ter cometido violência gratuita contra civis enquanto que 13% admitiam já ter cometido esse tipo de agressão por mais de uma vez.
Até ai tudo se parecia mais ou menos com o que eu imaginava, contudo, quando a pesquisa perguntava sobre o que pensava o policial diante da atitude violenta praticada por colegas o número me surpreendeu: Mais de 97% dos questionados não conseguiam ver essas atitudes violentas como um fato criminoso.
Essa pesquisa sem qualquer caráter oficial foi feita no século passado, no ano de 1985. Será que algo mudou desde então?
Não sei se alguma coisa mudou, mas vou utilizar esses números para falar com eventuais leitores pertencentes a policia:
Vou começar falando para aqueles 87% que não são violentos, mas que de algum modo já presenciaram a violência cometida por outros policiais: Abandone esse comportamento de indiferença e combata esse crime. Você de qualquer graduação ou patente, que não se omite diante dos seus deveres e combate o delito muita vezes expondo a própria vida, tem todo o direito e até mesmo o dever de condenar e coibir esse tipo de crime que tanto tem prejudicado a corporação como um todo e a você individualmente. Esses elementos não têm preparo psicológico para ser policial e não têm a dignidade indispensável para vestir a farda da PM.
Agora a pouco acabei de ler um E-mail oriundo da acessória de um combativo Deputado estadual e representante da classe informando que mais de 100 PMs adentraram a assembléia legislativa buscando e reivindicando direitos adquiridos e ameaçados. No seu discurso emocionado o Deputado falou do caráter destemido desses homens que não tem medo de encarar a bandidagem mesmo portando ridículos revolveres calibre 38.
...Pensando ainda nas palavras do nosso lúcido Deputado eu também questiono: Como pode tão destemidos policiais titubear diante de pequenos delinqüentes fardados, cometendo um sem números de desatinos que vão sempre recair sobre os demais?Não será talvez o receio de ser rotulado de “Caxias”?...Não companheiros, isso não é ser Caxias. Isso é defender a sua instituição, a sua família e a si mesmo.
PORQUE NÃO GOSTAMOS DE SER ROTULADOS DE CAXIAS
A PM é um “bicho de duas cabeças”. Ela é “policia”, mas ela também é “militar”. Essas duas coisas juntas não fazem muito sentidas, mas quem é PM precisa se adaptar e conviver com essa dualidade.
Nos quartéis temos todo o ritual militar como parada militar as sextas-feiras e ordem unida, muita ordem unida principalmente nos cursos de formação. Durante todas as manhãs, em forma, nos marchamos e estacionamos num ponto especifico para ouvir a ordem do dia. Somos ai 100% militares.
Entre oito e nove horas assumimos as nossas guarnições e, a bordo de viaturas, ganhamos as ruas da cidade.
Uma voz no radio determina uma primeira diligencia policial depois outra e outra... E na loucura da nossa estranha rotina não temos mais tempos para formalidades militares. Nesses momentos nos somos apenas policiais. Muitos gostam dessa coisa de ser 2 em 1 outros nem tanto, mas é a nossa realidade e como tal deve ser assimilada.
Penso que é perigoso gostar mais de ser policial ignorando os preceitos do militarismo ao qual estamos sujeitos. Também nocivo é querer ser 90% militar desprezando os aspectos da vida policial.
Vou falar do caso mais grave daqueles que preferem o “militar”.
Eles vão sempre optar por trabalhar no serviço interno. Para eles uma escola de formação seria o paraíso: É o “Caxias”.Normalmente conhece o RPPM (Regulamento Disciplinar da Policia Militar)de cor e salteado.É a sua Bíblia.Fazendo um paralelo com os religiosos, ele seria um fanático...E como todo o fanático tem visão limitada. Na maioria das vezes não se interessa em resolver eventuais problemas vividos pelo seu colega ou subordinado. Só sabe sugerir punições.O seu inimigo prioritário não é o bandido comum mas sim o seu subordinado hierárquico.Se tem graduação ou patente vive imaginando que a PM é uma espécie de propriedade particular onde soldados são meros serviçais...não passa pela sua cabeça a idéia de grupo, equipe, corporação...a atividade fim da instituição não é, para ele, o mais importante. Só a ordem a hierarquia e a disciplina são importantes. O “militar”, normalmente não conversa, grita. Como quase sempre é limitado intelectualmente também não gosta do debate de idéias e adora fazer calar. É o dono da PM e por conseqüência é também o dono da verdade.
Quando alguém não consegue se beneficiar da força do argumento tudo o que lhe resta é o argumento da força e a força do “Caxias” é o regulamento. Quando tudo lhe parece perdido e ele não consegue encontrar nada no regulamento que incrimine a sua suposta vítima ele inventa um: Assim nasceu o “R QUERO” uma espécie de regulamento paralelo e clandestino famoso em todas as policias do Brasil.
Apesar de afastado do serviço ativo posso perceber que a figura do “Caxias” felizmente, é uma espécie em extinção na PM. O ingresso na Academia através de vestibulares concorridos permitiu a formação de jovens oficiais mais preparados e por isso mesmo mais educado suprimindo a histórica idéia de hereditariedade no oficialato.
...Esse capítulo teve apenas o objetivo de esclarecer o fato dessa ojeriza a figura do Caxias. Ninguém quer ser Caxias.
Aproveitando-se desse pormenor alguns elementos quando são objurgados pelas suas atitudes irresponsáveis e violentas usam o ardil de rotular o superior imediato de Caxias objetivando desestimulá-lo na pratica de novas repreensões.
Dirijo-me agora ao grupo dos 13% que admitiram já ter cometido algum tipo de excesso algumas vezes. O meu conselho é de que revejam os seus conceitos e mude os seus métodos. Dentre todos os crimes praticados por policiais a violência é disparada o que mais agride e revolta a população. A legislação nos faculta o direito de trabalhar e até mesmo andar armados visando à proteção eficaz do cidadão e não para afrontá-lo.
...Depois do desfecho trágico no caso da menina Eloá, em que a vítima foi assassinada pelo seqüestrador, a mídia bateu forte na PM paulista e a acusou de despreparo.
Num primeiro momento cheguei a ficar irritado diante das colocações “tendenciosas e exagerado” da imprensa, mas depois analisei friamente tudo o que acontecera e alguns aspectos me chamaram a atenção:
Primeiro: apesar de toda a bronca da imprensa, a população em geral e até mesmo os parentes das vítimas reconheceram o esforço da PM.
Segundo, a minha analise fria me permitiu ver que de fato a operação poderia ser mais bem conduzida.
A PM não tem culpa pelo seu despreparo. A culpa é dos políticos que, de forma criminosa, negligenciam e negligenciaram durante todos esses anos com a questão da segurança publica.
...Eu ainda estou falando com o grupo dos 13% e estou tentando mostrar que o esforço da policia paulista foi reconhecido pela população apesar do desfecho trágico. Quero dizer que se a PM usasse de alguma forma de violência contra qualquer das pessoas presentes naquela ou em outra situação ela seria rechaçada mesmo que a operação fosse repleta de êxito. As pessoas não suportam e não perdoam a violência advinda daqueles que têm o dever de protegê-las. O povo não perdoa a violência policial.
A PURIFICAÇÃO
Há uma diferença entre violência e bravura.
Desafiar o medo, calcular os riscos e invadir áreas de domínio do crime organizado ou ambiente por eles tomado é a rotina das policias e é a constatação dessa bravura.
Defender a vida de terceiros, muitas vezes com o sacrifício da própria vida, faz parte do nosso cotidiano e também evidencia esta bravura.
Agredir gratuitamente bêbados, cheira-colas e pequenos delinqüentes não é sinal de bravura e sim atestado de covardia.
Precisamos ser reconhecidos pelas nossas bravuras, pelas nossas competências e pelo nosso profissionalismo.
Necessitamos banir do nosso meio os policiais covardes para que as ações honestas dos bons policiais possam se destacar. Uma noticia negativa sempre vai ter mais evidência nos meios de comunicação e não adianta aquela velha choradeira de que a PM é uma eterna perseguida da mídia no Brasil. Temos que nos purificar, temos que melhorar a nossa imagem e quando isso acontecer a imprensa também vai agir diferente.
NÃO SOMOS AMADOS
É difícil pensar na imagem da corporação durante uma ação policial, mas não é impossível. Agora mesmo presenciei na TV um oficial da PM carioca, de forma simpática, isentar de culpa uma diretora de escola que tentara impedir anteriormente a entrada da PM numa escola onde em seguida fora encontrada um grande arsenal de armas e munições.
Durante uma abordagem policial o PM deve ser duro e as pessoas precisam ser revistadas com muito rigor. Isso é algo do qual ninguém gosta, mas se depois da abordagem houver um breve esclarecimento acerca da necessidade da operação junto com um pedido de desculpas todos vão entender e elogiar.
Já se viu, portanto, que não é nada complicado cultivar a boa imagem da corporação.
Até mesmo nas pequenas atitudes é possível ser simpático sem precisar amolecer. Quando servi no sexto batalhão fui, por um período, comandante de um módulo na Estação da Lapa, maior estação de transbordo de Salvador. Nos horários de pico tinha que coordenar a organização das filas de acesso aos ônibus coletivos. Uma bagunça.
Depois de alguns dias de observação resolvi inovar e determinei aos meus comandados que organizassem, não apenas uma, mas duas filas em cada ponto: uma fila só de mulheres, que teria acesso prioritário e outra de homens que viriam em seguida.
O resultado foi o melhor possível ninguém reclamou. As mulheres adoraram, pois passaram a viajar sentado, o que, antes, nem sempre era possível.
Está aí mais uma pequena ação simpática.
A PM tem um grande histórico de serviços prestados à população e tem todas as condições de reverter esse quadro e cultivar uma melhor imagem diante da opinião publica... Ingleses e Japoneses adoram as suas policias. Nos também podemos e esse trabalho de recuperação depende de algumas decisões políticas e de comando, mas depende mais e, sobretudo de nos mesmos. Só o PM conseguirá salvar a PM.
ELES SÃO AMADOS
...Vamos citar o exemplo do Corpo de Bombeiros. A população em geral admira e gosta dos Bombeiros. A imagem que se tem desses homens está vinculada a coragem e ao desprendimento no ato de salvar vidas... E é esse sentimento de admiração e confiança oriundo da população que volta qual bumerangue, contagia e alimenta a corporação num ciclo virtuoso que dá sustentabilidade ao trabalho de servir com responsabilidade e dignidade.
A população se orgulha do seu Corpo de Bombeiros e os Bombeiros se orgulham desse sentimento de respeito e carinho a eles dispensado.
O povo, em sua grande maioria, não sabe que a Policia Militar e os Bombeiros Militares são uma única instituição.
O PM, em sua rotina diária, também salva vidas expondo a própria vida. Atos de coragem e bravura são comuns no âmbito de ambas as instituições. Porque então os bombeiros são amados e os PMs são odiados?
É claro que há particularidades. É claro que a atividade policial por si só não é algo que empolgue e desperte a simpatia das pessoas, mas o fato é que os Bombeiros Militares não estão contaminados pela CTPVG: “Cultura de Tolerância a Pratica da Violência Gratuita”. Nenhum bombeiro vai achar normal se um dos seus componentes começarem a agredir a alguém no meio de uma operação e todos vão se preocupar com as conseqüências daquele ato individual para a imagem da agremiação.
Já disse aqui e repito que apesar da dureza que caracteriza a profissão policial militar há espaço para um relacionamento amistoso e até mesmo simpático, em algumas circunstancias com a população.
O grande número de ocorrências, (pequenos e grandes problemas da população) elucidados ou encaminhados para a elucidação por prepostos da PM diariamente conferem a ela o status de grande prestadora de bons serviços. Mas esses números não são aproveitados em beneficio da corporação ou no máximo são relatados (apenas alguns) na pagina da instituição em pequenas notas.
A estratégia de marketing, contudo, só fará sentido depois da purificação. Antes disso seria como carregar água numa peneira. Inútil.
UMA BOA AÇÃO POLICIAL
Estava eu próximo a chamada feira do Paraguai no centro de Vitória da Conquista quando um elemento, aproveitando-se da distração da vitima, subtraiu-lhe o telefone celular.
Uma dupla de jovens policiais presente no local, saiu imediatamente no encalço do criminoso conseguindo capturá-lo mais adiante .
Sem alarde e usando apenas a força necessária para conter o meliante e algemá-lo os policiais tiveram a recompensa do reconhecimento imediato por parte da vítima e dos populares presentes que, ainda que timidamente, esboçaram uma iniciativa de aplauso.
Um dos policiais sacou o seu telefone celular e solicitou a presença da viatura. Quase que ao mesmo tempo estabeleceu contato com testemunhas e esclareceu a vítima acerca da necessidade de se deslocar até a Delegacia... ou seja: Os Policiais foram perfeitos. Executaram a prisão e reuniram os elementos que caracterizavam o flagrante. Uma atitude digna de aplauso e reconhecimento, mas inteiramente banal no âmbito interno da policia.Não há reconhecimento.A PM é assim.
A ESTORIA NÃO TERMINA AI... INFELIZMENTE
Cinco minutos após o impecável serviço da dupla de policiais chega à viatura solicitada para conduzir o preso.
Da Caminhonete saltam quatro policiais que sem qualquer formalidade seguram com violência o preso algemado atirando-o qual um saco de batatas ao fundo da viatura.
A atitude dos policiais provoca quase que imediatamente, a revolta da população e principalmente da vítima que agora se recusa com veemência a ir à delegacia. “Foi só um celular... não precisava tudo isso” dizia penalizada. As testemunhas arroladas também desapareceram e o mesmo povo que antes aplaudia agora vaiava com entusiasmo.
A viatura parte cantando pneus e deixando para traz a multidão que logo se dispersa. Em meio a tudo dois jovens policiais agora confusos e desestimulados.
Da barraca, de onde sentado eu tomara meu caldo de cana e assistira a tudo, me veio por instantes a sensação de descrença quase que absoluta na recuperação da instituição.
Os caras saíram cantando pneus, conduzindo um pobre diabo rumo a uma delegacia sem ao menos saber direito o que tinha acontecido.
Sem testemunhas, vítima ou ao menos o elemento do crime (O celular) o meliante seria recebido apenas formalmente para ser liberado algum tempo depois.
Se fosse preso em flagrante ficaria afastado do convívio da população e talvez fosse recuperado pelo sistema prisional. (pelo menos esta é a idéia)
Os Policiais da viatura prestaram um desserviço a comunidade; atrapalharam o bom andamento dos trabalhos conduzidos pela jovem dupla de PMs e ainda (talvez)plantaram nestes a semente da incompetência e da maldade.
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...Agora, enquanto escuto no rádio noticias acerca do bom desempenho da PM no carnaval 2009 fico imaginando que a participação dos três mil novos soldados presentes no evento pode ter contribuído de modo importante nessa estatística.
No aspecto profissional o jovem policial comporta-se, quase sempre, de forma exemplar durante o seu primeiro ano enquanto policial. Infelizmente grande parte vai se deixar contaminar e alguns até vão, fatalmente, enveredar pelo caminho da violência, do crime ou de ambos.
SE ELES SOUBESSEM...
A PM é uma das instituições mais dignas desse país e presta fantásticos serviços a população. Mas a PM também tem um histórico de violência desnecessária que macula a sua imagem e isso não podemos negar. Essa violência é devolvida pela sociedade em forma de ódio e preconceito num ciclo perverso que atinge todos os policiais indiscriminadamente. As pessoas não se dão ao trabalho de analisar os fatos e estabelecer separação entre bons e maus. Generalizar de forma proposital faz parte da vingança alimentada pelo ódio.
No seio das corporações policiais há uma máxima - por exemplo - que numa outra circunstancia seria motivo de orgulho popular: Policiais (militares e civis) nunca se omitem diante do perigo e aquele que por ventura venha a cometer algum ato de covardia é imediatamente rechaçado pelos seus pares, perde o respeito dos seus subordinados e é castigados e humilhados pelos seus superiores hierárquicos. Omissão é uma palavra proibida no meio policial... isso é cultural. Isso é a boa cultura.
Se a população soubesse de tudo isso e se fossemos amados, por certo iriam sentir orgulho da sua policia e das suas particularidades.
Precisamos agora estabelecer a cultura da humanidade no atendimento a população e principalmente a intolerância a prática da violência gratuita e desnecessária. O uso da força apenas para conter e deter sem jamais agredir ou torturar.
O TRABALHO NA POLICIA
O PM trabalha em situações adversas e a falta de reconhecimento é só mais um dentre os inúmeros problemas.
Quando me formei sargento fui designado para trabalhar no serviço burocrático na diretória de finanças por ter sido o primeiro colocado da turma. Não era o que eu queria. Pretendia trabalhar na área de ação, comandar viaturas, atender a população e dar combate a criminalidade.
Penso que os alunos mais qualificados e mais bem classificados ao termino dos seus cursos deveriam ir trabalhar na atividade fim da corporação, nas ruas... mas o que ocorre é exatamente o contrario.
A área é como um castigo para onde os últimos são atirados. Ninguém vai se responsabilizar pelos seus erros ou aplaudir os seus acertos. Nada é mérito e tudo é obrigação.
Quando me envolvi pela primeira vez num confronto com marginais e vi as balas inimigas perfurando a viatura eu senti medo e depois senti vergonha do meu sentimento. O meu medo foi então desafiado pela minha coragem e eu me atirei ao chão atirando e lutando por mim e pela sociedade que jurei defender.
Descobri, depois, que o medo faz parte da vida das pessoas e que desafiá-lo e não recuar diante do perigo é também uma coisa que vicia e eu fiquei viciado. “Viciado em ação” como dizíamos. Conheço dezenas de PMs que sofrem desse mal.
Chegava cedo no batalhão para escolher a minha equipe de trabalho, (normalmente outros viciados como eu) e a área mais arriscada. Na central de rádio os operadores já sabiam que queríamos estar nas ocorrências mais difíceis e era para lá que nos mandavam e era lá que queríamos estar. A mesma adrenalina que nos saciava, saciava também, por certo os marginais aos quais combatíamos... mas nós tínhamos a técnica e era acreditando nessa técnica que tínhamos sempre a certeza da vitória.
Quando morreu o soldado Marão vitimado mortalmente em combate fiquei abalado. Era como um irmão. Fomos criados juntos. Quando meninos, éramos vizinho e amigos inseparáveis. Eu precisava sair da área por algum tempo. O vicio por adrenalina estava me enlouquecendo. A noite sonhava que trocava tiros com marginais e acordava sobressaltado, ofegante e com o coração disparado, mas nada disso impedia que já no dia seguinte me apresentasse para as operações de risco.
Procurei o Capitão da minha companhia para pedir que me colocasse na relação de férias daquele mês e não sei por que acabei desabafando sobre os meus pesadelos. A resposta foi uma estrondosa gargalhada seguida por uma frase: “está ficando aviadado sargento?” A PM é assim, mas deveria ser diferente. Uma equipe de psicólogos deveria estar sempre de plantão no atendimento aos policiais, principalmente a aqueles que estão na linha de frente.
Para resumir a estória vou dizer que ainda hoje depois de muitos anos afastado do serviço ativo ainda tenho esses pesadelos e conheço inúmeros colegas que dizem o mesmo.
FALANDO AOS BANDIDOS
FARDADOS
Finalmente vou parafrasear o “Capitão Nascimento” do filme Tropa de Elite para me dirigir a aquele percentual de bandidos escondidos por trás das fardas com o intuito de praticar a violência gratuita e outros crimes: Vocês não são policiais, não têm alma de policiais, não têm a dignidade mínima necessária para serem policiais. Vocês apenas estão policiais até que sejam descobertos e denunciados... e, antes que tal aconteça “peçam pra sair”.
CONSELHO FINAL
A PM está doente e só quando passarmos a combater os maus profissionais repudiando as suas atitudes violentas, arbitraria e desonestas, é que vamos estar de fato lutando em prol de nos mesmos e da nossa PM. Só quando pararmos de inverter valores e agirmos com a razão é que vamos estar, de fato, combatendo essa doença que nos persegue e nos debilita enquanto instituição.
Quando tal acontecer teremos o respeito e a admiração da população, da imprensa e dos governos. Seremos tratados como seres humanos pela sociedade e principalmente pelos nossos superiores hierárquicos. O nosso esforço será reconhecido para que, finalmente, tenhamos a certeza de que o trabalho honesto e incansável dos muitos companheiros que um dia tombaram em meio a essa guerra não terá sido em vão.
Edney Rocha
Primeiro Sargento PM